Thursday, December 15, 2005

dia 50. post 1

« E gritava:
- Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, imediatamente divertido:
- Oh, Jacinto! E as águas carbonatadas? e as fosfatadas? e as esterilizadas? e as sódicas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato. Eu admirei sobretudo a moça...Que olhos, de um negro tão líquido e sério! No andar, no quebrar da cinta, que harmonia e que graça de ninfa latina!
E apenas pela porta desaparecera a esplêndida aparição:
- Oh, Jacinto, eu daqui a um instante também quero água! E se compete a esta rapariga trazer as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero uma coisa!...Que olhos, que corpo...Caramba, menino! Eis a poedia, toda viva, da serra...
O meu Príncipe sorria, com sinceridade:
- Não! Não nos iludamos, Zé Fernandes, nem façamos Arcádia! É uma bela moça, mas uma bruta...Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, concebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marida todavia não parece contente, porque a desanca. Também é um belo bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou....Mas temos aqui a fêmea em toda a sua animalidade e o macho em todo o seu egoísmo...São porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um repouso.»

[A cidade e as serras, 1901 - Eça de Queiroz]